As Incertezas das Margens

Universidade Federal da Bahia

Mestrado do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade

Artigo: As Incertezas das Margens - Reflexões sobre liminaridade e subalternidade

Autora: Wayra Silveira

 

Introdução

 

            Este trabalho pretende abordar alguns aspectos dos contatos contemporâneos entre centros/lugares/perspectivas hegemônicas e periferias/lugares/perspectivas subalternas, dimensões sociais que vêm se deslocando dos velhos espaços estabelecidos e travando diferentes e numerosos diálogos nas margens, nas fronteiras, nas soleiras, contatos intensificados pela redimensionalização do tempo e do espaço nas lógicas da modernidade global. 

A liminaridade, situação de quem ocupa as margens do planeta e das nações, produz pensamentos, tipos, saberes que vêm operando transformações fundamentais no sistema mundial colonial/moderno. A liminaridade traz para o primeiro plano os sujeitos que pensam, olham e se constituem a partir da subalternidade, que possuem a possibilidade de construir narrativas em situações dialógicas diversas a partir da sua própria condição e sobre a sua própria história. As cosmovisões hegemônicas, historicamente responsáveis pela subalternização de saberes e conhecimentos, são o lado aparente do edifício do mundo moderno; os saberes subalternos são a face colonial da modernidade.

Porém, as histórias locais estão ganhando autoridade no novo arranjo de forças da modernidade colonial e confrontando os lócus de enunciação de onde surgem os projetos globais.

Durante este trabalho farei reflexões sobre o grupo liminar de artistas-devotos do baile pastoril Queimada da Palhinha, camponeses da comunidade centenária de Palmares, antiga Fazenda Coqueiro, localizada na área rural do município de Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador, Bahia. Este grupo é o tema da minha pesquisa no Mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia sob o título “A Queimada da Palhinha no Vale do Rio Itamboatá – a permanência de uma prática do Catolicismo popular rural na Região Metropolitana de Salvador”. Nesta pesquisa busco compreender a permanência e a reprodução desta prática religiosa em meio aos avanços da urbanidade e da industrialização e aos processos contraditórios entre o local e o global. Este grupo de imaginário camponês habitante de uma região hoje cercada por indústrias será referência para a discussão de aspectos da liminaridade.

A religiosidade, como a argamassa, o cimento, presente em todas as relações sociais das comunidades centenárias, estará presente na discussão; a religião, especificamente, o cristianismo católico, será mencionada aqui como o primeiro grande projeto global com aspirações de gerenciamento do planeta.

Na primeira parte deste artigo discutirei elementos da tese de Walter Mignolo a respeito do surgimento do “pensamento liminar”. Buscarei demonstrar como Mignolo considera as conexões entre histórias locais e projetos globais e o conseqüente surgimento do que ele chama de “gnose liminar” ou “pensamento liminar”, conhecimento produzido a partir de uma perspectiva subalterna. Ainda referenciada em Mignolo, vou refletir sobre a “hermenêutica pluritópica”, ou seja, sobre a importância de se considerar neste debate os diferentes lugares de enunciação dos sujeitos.

Em seguida tentarei compreender as características dos tipos liminares, me apropriando de algumas idéias de Roberto DaMatta, autor que oferece uma compreensão abrangente das sociabilidades nacionais compostas a partir da liminaridade. DaMatta considera o intermediário, o misturado, o liminar tipos fundamentais na constituição do Brasil.

Na terceira parte, discutirei a condição liminar do camponês na contemporaneidade, especialmente no Brasil. Citarei idéias de Margarida Maria Moura que reflete sobre as mudanças ocorridas na ética camponesa a partir do momento em que o trabalho e a terra tornaram-se mercadorias, produtos na lógica capitalista, desorganizando as relações anteriores quando a terra era referência existencial e o trabalho o modus vivendi. Tentarei demonstrar como a dialética da reciprocidade tradicional estabelece os diálogos com a dialética da exploração pós-moderna.

Nas considerações finais deste trabalho reflito sobre as possibilidades de desconstrução da subalternidade nos, cada vez mais rápidos e próximos, contatos liminares entre diferentes; sobre algumas negociações entre a tradição e a modernidade no contexto da comunidade de Palmares; sobre o lugar liminar em que se encontra o Brasil contemporâneo; e, finalmente, sobre a intermediação das organizações da sociedade civil nos diálogos entre comunidades e saberes tradicionais e dimensões políticas, econômicas e sociais da modernidade global.

 

 

O Pensamento Liminar

 

O teórico literário Walter Mignolo, argentino de nascimento, atual diretor e professor do Centro para Estudos Globais e Humanidades da Universidade de Duke, EUA, vem construindo nas suas obras categorias e conceitos importantes para a compreensão do colonialismo moderno e do sistema colonial global: noções como pensamento liminar, diferença colonial, hermenêutica pluritópica e lócus fraturado de enunciação são introduzidos por ele no debate sobre colonialismo na modernidade. Mignolo (2003) analisa os vínculos entre projetos globais e histórias locais e uma das suas principais teses, a que vamos discutir aqui, afirma que a globalização criou condições para a construção de saberes liminares.

Estudioso dos movimentos sociais da América Latina, e membro permanente da Academia da Latinidade, uma organização internacional que pretende servir de ponte para o entendimento entre as culturas do Ocidente com o Oriente, Walter Mignolo entende que, a partir da segunda metade do século 20, o nascimento do colonialismo global no planeta, administrado pelas corporações transnacionais, extinguiu os lugares polarizados entre periferia e centro válidos nas formas primeiras de colonialismo; antes a diferença colonial situava-se distante do centro, hoje emerge em toda parte. Mignolo distingue claramente o “período colonial”, que na América Latina corresponde à dominação espanhola e portuguesa, da “colonialidade do poder” fenômeno que sobreviveu às independências das colônias como “colonialidade global”.

O “ocidentalismo”, como imaginário dominante do mundo colonial moderno, conseguiu urdir uma nova forma de colonialismo, um colonialismo global, que prossegue reproduzindo a diferença colonial em nível mundial, mesmo sem localizar-se em um país específico.

Mignolo compreende a diferença colonial como o espaço físico e imaginário onde a colonialidade do poder opera, onde se legitima a subalternização do conhecimento e a subjugação dos povos. A diferença colonial é o espaço de encontro entre histórias locais: de um lado as histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais, de outro as histórias locais que os recebem.

A diferença colonial produz o que Mignolo chama de “pensamento liminar”, que é uma reação à própria diferença colonial e um pensamento fruto de uma perspectiva subalterna. O pensamento liminar surge a partir de um lócus fraturado da enunciação. Nas palavras de Mignolo “a diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas quais se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fraturada, como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica” (Mignolo, 2003, p. 11).

Os pensamentos latino-americanos, pensamentos liminares, híbridos, miscigenados, são enunciações fraturadas.

O colonialismo não desapareceu da face do planeta com a independência das colônias nos séculos 19 e 20. O poder e o saber promovem o colonialismo contemporâneo que está subordinado à hegemonia epistemológica do Iluminismo. A emergência do pensamento liminar representa uma quebra com a razão instrumental pós-iluminismo.

 

Pensar a partir de

 

Os povos considerados “com história” vinham escrevendo a história dos povos colonizados. Por isso tornam-se tão relevantes as reflexões de Mignolo a cerca do lugar de enunciação do pensamento liminar como uma forma subalterna de conhecimento. Na construção da história da América Latina, a grande maioria dos atores não foram os narradores daquilo que se concebeu como narrativas hegemônicas. Mignolo busca então transcender a distinção entre aquele que conhece e aquele que é conhecido e afirma o grande imperativo de se elaborar macronarrativas na perspectiva da colonialidade. O pensamento liminar é o espaço onde se elabora essa nova lógica.

Mignolo utiliza a palavra “liminar” relacionando-a com as questões da produção de conhecimento. O choque de cosmovisões ocorrido na América Latina nos últimos quinhentos anos, e até hoje, alterou todas as cosmovisões envolvidas e hoje temos escolhas, temos a possibilidade de pensar a partir das margens, de narrar uma outra história, de adotarmos o pensamento liminar como uma ruptura epistemológica.

O pensamento liminar é produzido na perspectiva da subalternidade epistemológica. Mignolo toma a noção de “gnose” no sentido de conhecimento em geral, “a gnose liminar, enquanto conhecimento em uma perspectiva subalterna é o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonial/moderno” (Mignolo, 2003, p. 33).

A gnose liminar estabelece-se em diálogos com a epistemologia a partir de saberes que foram subalternizados. Para Mignolo, o processo de subalternização do conhecimento está sendo modificado por novas formas de conhecimento, o que foi subalternizado e considerado tão somente objeto de estudo transforma-se na modernidade colonial em novos locais de enunciação. Nas brechas onde se origina o conflito entre as histórias locais e os projetos globais, não cabem descrições unilaterais, é o que Mignolo chama de “hermenêutica pluritópica”.

Para Mignolo o sistema mundial moderno tem início no século 16, e não no século 18 e no Iluminismo como se costuma afirmar. Mignolo reivindica: “Como meus sentimentos, educação e pensamento têm como âncora as heranças coloniais dos impérios espanhol e português nas Américas [...] [afirmar que a fronteira cronológica da modernidade é] o século 18, seria excluir-me do jogo” (Mignolo, 2003, p. 43).

Mignolo dialoga com as noções de “saberes subjugados” de Michel Foucault e de “saberes subalternos” de Darcy Ribeiro. Numa das abordagens de Foucault, saberes subjugados são os sistemas de conhecimento que foram considerados inadequados, insuficientemente elaborados, saberes nativos localizados abaixo do patamar estabelecido de cientificidade. Darcy Ribeiro articula em fins dos anos 60 a noção de saberes subalternos e torna clara a diferença entre “os antropólogos do Primeiro Mundo ‘estudando’ o Terceiro Mundo e os ‘antropologianos’ do Terceiro Mundo refletindo sobre suas próprias condições geoistóricas e coloniais” (Mignolo, 2003, p. 45).

Mignolo considera a religião uma dimensão fundamental na compreensão da subalternização do conhecimento, ele diz que “o cristianismo tornou-se o primeiro projeto global do sistema mundial colonial moderno e, consequentemente, a âncora do ocidentalismo e da colonialidade do poder” (Mignolo, 2003, p. 46). Projetos globais são projetos hegemônicos para o gerenciamento do planeta, e o primeiro projeto com esta abrangência teve como via principal a conquista das almas. No estudo da festa religiosa Queimada da Palhinha da comunidade centenária de Palmares é imprescindível a compreensão das relações históricas entre a igreja católica oficial e o fenômeno religioso conhecido como catolicismo popular, uma das maiores criações da multidão pobre e festiva da América Latina.

 

O Poder do Liminar

 

Conceito de liminaridade é fundamental para o estudo de grupos subalternos, pois o poder do liminar invariavelmente contrapõe-se ao poder hegemônico.

O antropólogo Roberto DaMatta (2000) afirma que, nas dimensões paradoxais da sociedade brasileira, sociedade feita de espaços múltiplos na qual existe a institucionalização do intermediário como um modo vital de sociabilidade, encontramos diferentes tipos liminares, misturados, ambíguos, paradoxais, intermediários, fronteiriços, marginais. Aspectos cruciais da sociabilidade brasileira são compostos por tipos liminares.

 Esta noção pode ajudar a compreender o lugar entre o mundo rural e o mundo urbano, entre a dimensão profana e a sagrada, entre a tradição e a modernidade em que vivem os artistas-devotos do baile pastoril Queimada da Palhinha da comunidade centenária de Palmares, um grupo que sempre viveu uma vida oprimida, paradoxalmente repleta de ritos, festas e representações. Estes anciões festeiros estão no limem, no entre, na soleira em vários aspectos, inclusive no que diz respeito à liminaridade que uma festa, especialmente uma festa religiosa, promove.

DaMatta aponta o lugar liminar da festa. Estudando o carnaval brasileiro ele notou que era um ritual situado dentro e fora do mundo, que salientava o coletivo e o individual.

Quando trata do conceito de liminaridade, DaMatta cita autores como Victor Turner, Mary Douglas e Edmund Leach. Para todos estes teóricos a liminaridade é inerente à própria sociedade humana, elemento essencial da constituição da própria sociabilidade, invariavelmente paradoxal, ambígua, considerada por estes autores também perigosa e negativa, pois trata de objetos, seres e instituições que “são e não são ao mesmo tempo”. Esta perspectiva negativa da liminaridade será refutada por DaMatta.

O tipo liminar é aquele que atravessa fronteiras de sociabilidades, fronteiras fictícias de uma mesma realidade social. Entre as características dos tipos e estados liminares elencadas por Roberto DaMatta, acredito que as que melhor correspondem ao grupo de artistas-devotos da Queimada da Palhinha,  são: a impureza, pois trata-se de um grupo que transcende as fronteiras classificatórias em alguns sentidos (mencionados acima); e a identificação com o processo "natural" do nascimento, momento entre o não-existir e o existir, o nascimento do Senhor Deus Menino.

Cito agora uma reflexão abrangente e intrigante de DaMatta sobre o poder do liminar nas sociabilidades brasileiras:

 

Como ter horror ao intermediário e ao misturado, se pontos críticos de nossa sociabilidade são constituídos por tipos liminares como o mulato, o cafuzo e o mameluco (no nosso sistema de classificação racial); o despachante (no sistema burocrático); a (o) amante (no sistema amoroso); o(a) santo(a), o orixá, o "espírito" e o purgatório (no sistema religioso); a reza, o pedido, a cantada, a música popular, a serenata (no sistema de mediação que permeia o cotidiano); a varanda, o quintal, a praça, o adro e a praia (no sistema espacial); o "jeitinho", o "sabe com quem está falando?" e o "pistolão" (nos modos de lidar com o conflito engendrado pelo encontro de leis impessoais com o prestígio e o poder pessoal); a feijoada, a peixada e o cozido, comidas rigorosamente intermediárias (entre o sólido e o líquido) no sistema culinário; a bolina e a "sacanagem" (no sistema sexual). (DaMatta, 2000, IV)

 

A Liminaridade do Camponês

 

Segundo antropóloga rural Margarida Maria Moura (1988), o camponês é um tipo que tem despertado interesses de pesquisadores e estudiosos justamente por ocupar um lugar ambíguo, pois controla a “terra no capitalismo sem ser possuidor de capital, [...] [trabalha] com a ajuda da família, à qual não remunera segundo a ótica capitalista, [...] estranhando, mais do que recusando a sociedade abrangente que o contém e circunda” (Moura, 1988, p. 8).

O que é ser camponês? Ser camponês é ter um ofício subalterno, é viver da terra e do que ela produz, é o trabalhador que se relaciona mais intensamente com os mistérios naturais, “é um observador dos astros e dos elementos. [...] Seu conhecimento do tempo e do espaço é profundo e já existia antes daquilo que convencionamos chamar ciência” (Moura, 1988, p. 9). O campesinato é sempre um grupo explorado, o lugar do camponês é invariavelmente caracterizado pela subordinação aos donos da terra e do poder.  

Nas sociedades agrárias, o camponês era o ator imprescindível da reprodução social, os alicerces sociais relacionavam-se objetiva e subjetivamente à fecundação da terra. O capital e o mercado, com suas novas lógicas de produção, revolucionam radicalmente a vida do camponês. A produção agora transforma a terra e o trabalho camponês em mercadoria. O camponês torna-se um tipo liminar, no intermédio entre a lógica moderna capitalista e as relações tradicionais de solidariedade e reciprocidade do ser humano com a natureza e do ser humano com o ser humano. O capital esgarça as relações de reciprocidade, mas não as destrói.

É nessa conjuntura de tensões e contradições que o camponês vive no mundo rural contemporâneo. Surge então, em alguns debates, a discussão sobre a possibilidade do desaparecimento do campesinato como conseqüência da reprodução do capitalismo no campo. No entrelugar, na liminaridade onde se encontra, o campesinato seria uma categoria em extinção? Até agora o capitalismo não erradicou o camponês; reorganizou o trabalho no campo e determinou a apropriação da terra, mas o quem se nota é uma recriação, redefinição, diversificação do campesinato e não a sua extinção. Margarida Maria Moura afirma que “o camponês adaptou-se e foi adaptado, transformou-se e foi transformado, diferenciou-se internamente, mas permaneceu identificável como tal” (Moura, 1988, p. 18).

No Brasil, o capitalismo chega definitivamente ao campo quando se estabelece a propriedade capitalista da terra; a Lei das Terras de 1850, a transforma em objeto de compra e venda, a partir de então a lógica do mercado vai pouco a pouco se estabelecendo no campo. Porém, a terra, referência material, simbólica e existencial do camponês, apresenta um desafio para a lógica capitalista: ela não pode ser reproduzida, logo não pode ser utilizada como um produto capitalista no sentido clássico do termo. Moura reflete:

 

O sistema capitalista [...] não consegue por nenhuma lei dos homens e, muito menos, da natureza, ampliar a terra onde também tem interesse em investir e lucrar [...]. Se [...] a terra não é reprodutível, por que então o camponês permanece nela sem que a lógica capitalista demande sua completa expropriação? [...] Ocorre que o camponês desempenha um contraditório papel que, de um lado, expressa a sua resistência em desaparecer e, de outro é resultado do próprio capitalismo que não o extingue [grifo meu]. (Moura, 1988, p. 19)

 

A terra agora não é mais lugar de morada, de família e parentesco, ela não é mais o lugar sacralizado por rituais e festas. Os seus ritmos industrializam-se, a terra virou mercadoria, o que ela produz agora serve mais para a troca do que para o uso. A terra como mercadoria promove relações e eventos totalmente diversos de quando ela é considerada um modo de vida.

Com a expansão do capitalismo no campo, os camponeses moradores e trabalhadores de muitas fazendas no interior do Brasil foram expulsos do seu tradicional modo de vida. A antiga Fazenda Coqueiro, no atual município de Simões Filho, e outras fazendas que se estendiam até Passagem dos Teixeiras, eram de propriedade da família Teixeira e tinham como patriarca o Coronel Cazuza Teixeira. Com o seu falecimento em meados do século 20 e com o avanço da lógica urbano-capitalista na região, a Fazenda Coqueiro foi vendida pelos herdeiros e transformada posteriormente pelos novos proprietários em um loteamento chamado Chácara Palmares. Neste momento marcante para o grupo camponês que vivia nesta fazenda, momento que irá inaugurar as transformações sociais posteriores nesta comunidade, foi exigida a compra de um lote para cada família que já habitava nestas terras, muitos moradores desde que nasceram. Seu Manoel Lopes, 85 anos, ancião participante da Queimada da Palhinha, falou em um depoimento em 2003 sobre o momento da venda da Fazenda Coqueiro:

 

A mudança de nome de Coqueiro para Palmares foi porque era Coqueiro, era fazenda. Quando Garcia comprou, achou que deveria mudar o nome para Chácara Palmares. Quer dizer o nome velho é Coqueiro, mas do loteamento para cá botou o nome de Chácara Palmares por causa do loteamento. [...]. A gente não tinha direto que os proprietários não dava para a gente e quando surgiu que as duas herdeiras  quiseram a parte delas para vender, [...] elas  não queriam ficar administrando sendo fazenda, queriam eram para vender mesmo porque estavam precisando do dinheiro delas, então abriu  o bico para vender.  Então apareceu esse Garcia de Salvador, não sei se por jornal, foi e comprou o terreno. Depois que comprou, aí veio com um tempo e mandou avisar que era dele esse local que ele tinha comprado. O velho meu pai que era veterano aqui dentro, morador velho, sabia aí disse pra eles. Aí ele mandou que a gente fosse lá que queria conversar com a gente. Num dia de domingo nos descemos e fomos ver o que era que ele queria. A gente nem estava pensando nesse tipo de coisa. Chegou lá ele aconselhou a gente, que onde a gente estava ocupando, onde morava que aquela área era dele, ele já tinha comparado e já tinha pago. E que procurou saber dos donos o que fazia com a gente. E que os donos responderam que a gente não tinha importância. [...] Para quem a gente ia apelar? Se não tinha justiça... Pra onde a gente ia correr? Tinha que ficar calado mesmo. Não tinha importância. Mas na lei dele, ele achou que quem estava no seu lugarzinho, como até hoje eu estou, para não sair, ele voltou e disse a gente: ‘Comprei para revender, agora tem outra coisa que quero dizer a vocês, dar a vocês eu não posso dar, porque quem podia dar a vocês era os patrões de vocês, que vocês vinham acompanhando há muito tempo, há muitos anos. Eles me disseram que vocês não têm importância...’ [...] “mas para vocês eu vou fazer o seguinte, eu estou vendendo, abri o loteamento e vendendo à 300 mil réis o metro, para vocês vai ser a base de 150 mil réis dividido os 300 mil réis no meio. Agora vocês vão se virar para não sair ninguém daí de dentro, ficar cada qual no seu lugarzinho. [...] Então cada qual que esta no seu lugar, faça um esforço, compre seu lugarzinho para sair ninguém daí de dentro”. Foi aí que muitos saíram para Simões Filho, Camaçari, para todo saiu gente. E quem não morreu até hoje está aqui dentro.

 

Este grupo camponês experimenta a passagem de um espaço definido para outro indefinido, ou seja, para um espaço ambíguo, liminar.

Sobre as concepções e práticas religiosas camponesas, Margarida Moura percebe que a forma direta com que o camponês se envolve com a terra, a água, o sol, o ar faz com que ele se relacione com a divindade quase sempre sem a intercessão dos agentes da igreja oficial. Membros da própria comunidade ocupam lugares de intermediários entre o céu e a terra, entre o sagrado e o mundano, e são reconhecidos pelos demais como portadores de saberes religiosos. 

Este é o caso de Dona Sartíria e de Dona Pina, as pastoras mais velhas da Queimada da Palhinha, anciãs que comandam o ritual em devoção ao Senhor Deus Menino e ocupam lugar de prestígio na comunidade de Palmares, recebendo menções de reverência cotidianas dos parentes e vizinhos.  

 

Considerações Finais

 

Liminaridade é o regime de tudo o que vive sob fronteiras no espaço dialógico, entendendo-se como fronteiras aquilo que Walter Mignolo chama de margens do sistema mundial colonial/moderno, um todo que pode estabelecer contato, uma superfície liminar de relação, produzindo dinâmicas que permitem o trânsito entre o externo e o interno.

O pensamento liminar oferece ao mundo contemporâneo a possibilidade de uma desconstrução da subalternidade, através dos contatos cada vez mais intensos entre os papéis e narrativas criadas pelos grupos subalternos e as lógicas hegemônicas; os tipos, saberes e grupos liminares ocupam lugar principal nas negociações entre as histórias locais e os projetos globais. Nestas situações dialógicas planetárias estão em cena não apenas os saberes acadêmicos produzidos por intelectuais latino-americanos, caribenhos, africanos ou indianos, mas também os saberes populares das pessoas das classes populares destes países colonizados. Desconstruir a subalternidade não quer dizer negá-la ou invertê-la, significa antes torná-la paulatinamente uma relação de reciprocidade.

Emigrados recentes de um modo de vida em que o calendário se regulava pelos elementos, pelos ritmos de trabalho e festa, o grupo camponês da comunidade centenária de Palmares, artistas-devotos do Senhor Deus Menino, detentores de saberes orais e tradicionais, habita hoje nas franjas entre o rural e o urbano, justamente nas intersecções onde as comunidades centenárias pouco a pouco se desarticulam, ou melhor, se rearticulam nas lógicas da liminaridade.

No entrelugar que ocupa, no espaço da diferença colonial, este grupo camponês oferece um ambiente privilegiado para a compreensão da liminaridade, onde se encontram e dialogam importantes vetores da modernidade (localizado entre dois grandes parques industriais – COPEC e CIA – e na região metropolitana de um dos maiores centros urbanos do nordeste brasileiro) com estruturas, regras e conteúdos tradicionais (compadrio, parentesco, vizinhança, reciprocidade, relação com a terra, festas religiosas, etc.) pautadas na oralidade e na memória.

Como esta história local, feita de camponeses sul-americanos, brasileiros, nordestinos, baianos, detentores de saberes subalternos e subjugados, vem dialogando com o projeto global da modernidade/colonialidade global? Como a tradição vem negociando com a modernidade neste contexto? Tinha-se a idéia que a tradição era frágil, que não possuía instrumentos para negociar com a urbanidade/modernidade sem estar fadada ao aniquilamento, mas na verdade as sociedades centenárias estão em constante transformação e a comunidade de Palmares não é diferente; tradição não é isolamento, imobilidade; tradição é memória no presente, é oralidade resignificada.

O Brasil contemporâneo vive politicamente em uma situação liminar, após a eleição do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, entramos num entrelugar em que diferenças são deslocadas paulatinamente de uma perspectiva hierárquica, se considerarmos a própria diferença de um retirante nordestino, operário, líder sindical, ter se tornado o presidente eleito do país com o maior número de votos em nossa história. As concepções que trabalham com o central e o periférico, como pólos opostos e excludentes, perdem pouco a pouco o sentido, dando lugar a concepções que consideram diversos centros, vários contextos e múltiplas relações, que envolvem diferentes sujeitos, abolindo gradativamente dependências e sujeições, e abrindo espaços para novas experiências de sujeito.

Políticas públicas do Brasil atual juntamente com ações da sociedade civil organizada vêm provocando importantes contatos e articulações. No diálogo contemporâneo entre diferentes, assistimos as mediações realizadas por ONG’s na sociedade brasileira, que trabalham diretamente com comunidades tradicionais em projetos culturais, educacionais, ambientais, etc., e ao mesmo tempo dialogam com os poderes estabelecidos e com políticas públicas de diversos setores sociais historicamente tão distantes das camadas populares.  Nesta perspectiva, participo como colaboradora da Fundação Terra Mirim, entidade de interesse social atuante na área rural de Simões Filho, Bahia, em duas ações que envolvem os saberes do grupo de anciões da Queimada da Palhinha: a Ação Griô Nacional, política pública do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva do Ministério da Cultura, Governo Federal, que propõe a valorização de saberes populares, o respeito à cultura tradicional e oral do Brasil e envolve diferentes organizações da sociedade civil que trabalham com grupos de tradição oral; e o Brasil Memória em Rede, uma rede nacional de organizações que trabalham com a memória como ferramenta de desenvolvimento social promovida pelo Museu da Pessoa.

Concluo refletindo que estas ações político-culturais, podem ser consideradas vias de diálogo, de negociação entre os elementos e saberes tradicionais deste grupo subalterno e as lógicas da modernidade; ainda que através da mediação da sociedade civil institucionalizada, os saberes orais deste grupo de artistas-devotos poderão ser, talvez, de alguma maneira, dessubalternizados.

 

Bibliografia

. DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, Rio de Janeiro,  vol.6, n.1, 2000.

. MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais. Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

. MOURA, Margarida Maria. Camponeses. São Paulo: Editora Ática, 1988.