A Morte do Verbo Ser

Universidade Federal da Bahia

Mestrado do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade

Artigo: A Morte do Verbo Ser - Reflexões sobre a invenção da nacionalidade brasileira a partir da invenção do samba como música nacional

Autora: Wayra Silveira

 

1. Introdução

Como mestranda do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, no percurso que cumpri na disciplina Cultura e Sociedade no Brasil ministrada pelo Prof. Dr. Milton de Araújo Moura, a compreensão mais radical (a raiz, o fundamento) que alcancei nos estudos sobre a cultura brasileira diz respeito às identidades de diferentes sujeitos que normalmente acreditamos serem verdades atemporais e indiscutíveis.

Neste estudo deparei-me com narrativas tecidas, textos inventados e reafirmados em contextos espaciais e históricos determinados, anunciados com sucesso como definidores do que é Brasil, do que é ser brasileiro, nordestino, baiano...

O título deste trabalho traz uma formulação (cunhada pelo Prof. Milton Moura) somente possível em meio aos arranjos descentrados da pós-modernidade que transtornou, que desmanchou a concretude das coisas.  Parece que o verbo ser não tem mais cabimento, ele encontrou a sua ruína na fragmentariedade das sociedades contemporâneas. No mosaico contemporâneo “de buscas desesperadas ou desesperançadas do sentido” (Moura), as coisas não são mais (aliás, parece que elas nunca foram – porém quando foram, pareciam que eram), as coisas conformaram-se em discursos inventados que couberam bem, couberam justos, nas sociedades que os engendraram.

O Prof. Milton Moura afirma decididamente que “as coisas não simplesmente são, elas se configuram como...”. Moura compreende a identidade como um texto que pode ser analisado em três dimensões: como tecimento (a construção do texto), como tecido (uma obra dada) e como tessitura (a estrutura do texto). Neste trabalho vou privilegiar a dimensão do tecimento, ou seja, aquela que busca conhecer o processo de constituição de uma identidade, aqui do texto Brasil.

Ao debruçar-me sobre esta temática, pude vislumbrar a complexidade do processo de formação de um texto identitário, mas somente depois de amargar a sabor de engano a respeito de algumas das minhas crenças mais assentadas sobre elementos da brasilidade. Posso citar como exemplo a crença (ressalte-se: não só minha) de que o baião como gênero musical tocava originalmente nas noites sertanejas do nordeste antes que os seus primeiros representantes migrassem para o sudeste brasileiro. Foi com certa resistência que admiti que naquele momento da história do Brasil, por volta dos anos 20 do século passado, ainda não havia nem “baião”, nem “sertão”, tampouco “nordeste” ou “sudeste”, e que todos estes textos foram inventados posteriormente, e no Rio de Janeiro.

Parece que a invenção das identidades não as torna narrativas falsas, meros embustes, coisas mentirosas. São inventadas na medida em que não se produzem por si mesmas como uma decorrência natural e inevitável da essência de um sujeito, ou por que as coisas são o que são. As identidades são urdidas por diferentes forças sociais e afirmam uma versão vitoriosa sobre determinado sujeito. Um texto identitário “é aquele que realiza a asserção direta da identidade, o anúncio explícito do perfil de um sujeito” e sempre “é construído sim, posto que é texto”. (Moura, 2001).

Considero neste trabalho a concepção radical de nada (e não apenas as identidades nacionais) simplesmente ser; rendo-me à idéia de que, sob o ponto de vista das suas formações identitárias, as coisas foram inventadas.

Na primeira parte deste artigo discutirei elementos de teorias que tratam da formação das identidades nacionais contemporâneas, centralmente as idéias de autores integrantes da escola multidisciplinar conhecida como Estudos Culturais de Birmingham, centro acadêmico multidisciplinar de língua inglesa, Stuart Hall e Homi Bhabha, que afirmam a identidade como invenção e idéias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a “modernidade líquida”. Buscarei compreender o surgimento das identidades nacionais e das nações na modernidade como frutos de um consenso “que livra o ser humano do caos” (Moura).

Em seguida tentarei demonstrar, me apropriando de idéias da cientista social Marilena Chauí, a existência de um mito fundador da cultura nacional, uma narrativa mítica que oferece uma representação homogênea sobre a nacionalidade brasileira.

Na terceira parte, discutirei aspectos da formação do texto Brasil procurando compreender o percurso do gênero musical considerado o principal denominador da identidade brasileira, o samba, desde a sua associação ao atraso rural até a sua afirmação como ritmo nacional urbano, emblema musical do país. Abordarei a conformação dos atuais anúncios da nacionalidade brasileira e o papel da cidade do Rio de Janeiro na elaboração e organização da brasilidade. Prosseguirei dialogando com o Prof. Milton Moura, sobretudo através das idéias expostas na tese de doutoramento Carnaval e Bahianidade – Arestas e curvas na coreografia das identidades do Carnaval de Salvador, estudo que traz importantes reflexões sobre a brasilidade. Citarei idéias do texto O samba, a opinião e outras bossas... na construção republicana do Brasil de Alice Rezende de Carvalho publicado no livro Decantando a República. Carlos Sandroni e Hermano Vianna também serão aqui importantes autores de referência.

Na última parte deste trabalho abordarei um ponto crucial de conflito entre as teses dos livros Feitiço Decente de Sandroni e O Mistério do Samba de Vianna sobre a invenção do samba.

Desarranjo de verdades estabelecidas, eis a síntese metodológica deste curso de Cultura e Sociedade no Brasil. Chegamos a macular (no sentido mesmo de profanar) crenças instituidoras da cultura ocidental, quem sabe planetária, considerando a universalidade de algumas verdades em questão.

Momento extremo desta dialética da invenção em sala de aula foi a desentronização sumária do coração como o centro simbólico de comunicação dos sentimentos.

Trago este episódio como um exemplo de um possível efeito da “morte do verbo ser” na pós-modernidade. O sentido da metáfora do coração, sentido que organiza ações e concebe mesmo percepções de mundo, foi, no campo paradoxal da sala de aula (a um só tempo lógico e fabuloso), desconstruído.

Sugeriu-se que este papel do coração é também uma invenção, e das grandes, reafirmada obstinadamente em todo o mundo ocidental e ocidentalizado através das canções, dos poemas, dos mitos, dos enredos da incomensurável maioria das histórias contadas através dos mais variados meios.

O meu corpo, produto cultural, convencido das suas verdades, com um coração bom cumpridor do seu papel de sentir, abrir, dar pulos, ficar apertado ou sangrar, ficou intrigado, por segundos desorganizou-se, desprogramou-se. E agora, por onde fluirá o meu... amor? (O amor também é texto?!).

O Prof. Milton Moura (depois de cogitar ligeiramente o pâncreas ou os rins como órgãos candidatos a substituir o status histórico do coração) defende que a pele e as suas membranas mucosas são as vias privilegiadas de comunicação dos sentimentos; elas são, para ele, por onde sentimos. Não poderei refletir aqui sobre estas idéias tão intrigantes, pois tal reflexão não cabe neste trabalho.

Importante neste debate, ou melhor, nesta experiência, foi perceber que compreender o tecimento de um texto identitário é necessariamente desconstruí-lo; é também, talvez, conhecer os mistérios do sucesso da sua invenção. No espaço criado entre as ruínas da desconstrução, ampliam-se as possibilidades de enunciação de um texto alternativo, ou, quando menos, de encarar o texto vigente (que logo se reergue) de maneira relativa.

Mas voltemos ao nosso mister, a invenção do Brasil.

Marilena Chauí, em seu livro “História do Povo Brasileiro”, lembra que o Brasil não estava aqui à espera de Cabral. De fato, o Brasil não é uma “descoberta”, não é um “achamento”, o Brasil é uma invenção histórica e uma construção cultural.

 

2. Nacionalidade e Modernidade

A hipótese central do autor jamaicano Stuart Hall em seu livro “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade” é que as identidades nacionais na contemporaneidade são “formadas e transformadas” no interior da representação. Ser “brasileiro” só é possível devido ao modo como a “brasilidade” é representada pela cultura nacional brasileira no conjunto dos seus significados. As pessoas participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Segundo Benedict Anderson, uma nação é uma comunidade imaginada.

Hall reafirma que “uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos...”. (Hall, 2005).

As culturas nacionais são uma das referências fundamentais de identidade cultural na contemporaneidade. Elas são “uma forma distintivamente moderna” que, “ao produzir sentidos sobre ‘a nação’ (...), constroem identidades”. (Hall, 2005). As identidades nacionais tendem a se sobrepor a outras fontes de identificação cultural como gênero, etnia, classe, sexualidade, etc.

“A identidade nacional”, segundo Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra, “nunca foi como as outras identidades. Diferentemente delas, que não exigiam adesão inequívoca e fidelidade exclusiva, a identidade nacional não reconhecia competidores, muito menos opositores. Cuidadosamente construída pelo estado e suas forças (...), a identidade nacional objetivava o direito monopolista de traçar a fronteira entre “nós” e “eles” (Bauman, 2005).

Homi Bhabha, autor indiano da mesma escola teórica de Stuart Hall, ressalta o caráter pedagógico e performático da nacionalidade, ou seja, como uma construção cuja validade depende de sua reiteração com efeito persuasivo; Bhabha aponta a necessidade de dinâmicas de afirmação e reafirmação de uma nação. Bauman diz que uma comunidade nacional coesa “é um projeto a exigir uma vigilância contínua, um esforço gigantesco e o emprego de boa dose de força” (Bauman, 2005) para garantir a sua unidade. A nação é um “plebiscito diário”, como diria Ernest Renan.

Na crise moderna do pertencimento, pertencer por nascimento, ou seja, pertencer a uma nação “foi uma convenção arduamente construída”. As identidades nacionais já foram centradas, coerentes e inteiras, mas estão sendo agora deslocadas pelos processos de globalização, estão perdendo os suportes sociais que as faziam parecer naturais, predeterminadas e inegociáveis, e não estão mais oferecendo com solidez o “sentimento de nós” (idem, ibidem). Então, como o sujeito fragmentado pós-moderno é colocado em termos de sua identidade nacional?

Bauman diz que os indivíduos destituídos de referências de pertença rigorosas tentam estabelecer vínculos eletronicamente mediados, comunidades virtuais onde “é fácil entrar e ser abandonado” e que não oferecem “substância à identidade pessoal” (Bauman, 2005).  Nós, “habitantes do líquido moderno (...) buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de nossas identidades em movimento”, os lugares de pertença são agora atemporais.

“No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam” (idem, ibidem).

 

3. A Narrativa Mítica – O Mito Fundador

Em seu livro já referido Hall cita Bhabha, que diz: “As nações tais como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente” (grifos meus).

Acredito que para bem compreender o tecimento identitário de uma nação, é fundamental conhecer o seu mito fundador. Hall considera este, também chamado mito de origem, uma das formas de contar a narrativa da cultura nacional, são histórias que localizam a origem da nação num passado muito distante, em um tempo mítico. Buscarei a partir daqui compreender como é contada esta narrativa mítica sobre a cultura nacional brasileira.

Segundo Marilena Chauí “cada um de nós experimenta no cotidiano a forte presença de uma representação homogênea que os brasileiros possuem do país e de si mesmos. Essa representação permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiros” (Chauí, 2000). O mito fundador do Brasil, concebido no século XVI, produz esta representação e também a energia que a reedita; o repertório primeiro desta representação é rearranjado a cada momento da história nacional.

A narrativa mítica “é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade” e o mito fundador “à maneira de toda fundatio, (...) impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva permanentemente presente”. (Chauí, 2000)

Registros medievais narram o mito das chamadas Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem-aventuradas, territórios fabulosos onde imperariam a paz, a juventude, a abundância e a felicidade. Este lugar mitológico chamava-se Braaz para os fenícios e Hy Brazil para os monges irlandeses. No imaginário medieval estas ilhas abençoadas eram o verdadeiro “Paraíso Terrestre”.

Os mapas do momento inicial das Grandes Navegações, cartografias também do fabuloso, incluem a oeste da Irlanda e ao sul dos Açores a Insulla de Brazil ou Isola Brazil, esta terra que seria venturosa, afortunada, próspera e feliz.

A nação brasileira foi fundada sobre esse mito. A colônia portuguesa Brasil, oferece à narrativa mítica um território geográfico, e é concebida na sua “origem” como um jardim magnífico, de vegetação luxuriante e bela, com temperaturas amenas, sem extremos, abundância e excelente qualidade das águas, gente inocente, bela e simples e com muitas riquezas no interior dos “sertões”. Além disso tudo, ainda possui no firmamento o Cruzeiro do Sul, que a protege e orienta.

O Brasil na sua origem mitológica é a “terra abençoada por Deus”.  

 

4. O Samba – brasileiro por excelência

Depois de buscar compreender o mito fundador, o que Carlos Sandroni em seu livro “Feitiço Decente” chamou de “camadas profundas da identidade brasileira”, identidade a-histórica, a-temporal, inventada, mas “anterior a toda a invenção” da nacionalidade brasileira, vamos procurar perceber os anúncios atuais do texto Brasil, como se configurou a narrativa da brasilidade contemporânea. 

Que a nacionalidade brasileira é um artifício, uma tradição inventada, “um apelo, uma necessidade” (Moura), isso já está posto. Mas esta invenção teve um locus, um endereço, um centro criativo.

Segundo Moura, “algumas cidades se constituem, pelo mundo afora, como centros, núcleos, emblemas de processos que deságuam no estabelecimento de uma nação...” (Moura, 2001). E é a cidade do Rio de Janeiro que inventa a nacionalidade brasileira contemporânea.

“Nenhum outro lugar do país apresentava, no começo do século XX, um mundo popular tão buliçoso e com tanta presença no espaço urbano” (Carvalho, 2004). A então capital federal “era o próprio retrato da autonomia popular associada à crescente atração que seus intelectuais exerciam sobre diferentes estratos sociais...” (idem, ibdem).

E de todos os vetores que cruzavam o espaço urbano carioca a partir da segunda década do século XX, a música teve o papel basilar na construção da nação brasileira contemporânea. Para Moura “a música realiza o projeto de brasilidade” (Moura, 2001). “A produção musical realizada no Rio de Janeiro ou a partir daí divulgada, desde os anos 30, elaborou e organizou boa parte dos contornos que hoje associamos ‘naturalmente’ à brasilidade” (idem, ibdem). A partir daí a música popular brasileira torna-se um “hino nacional difuso”, um hábil mecanismo de formação de consenso, de mediação de interesses, além de um “veículo de trocas” que “integra públicos diversos; fornece os temas e o vocabulário em que o debate sobre a realidade brasileira se torna possível; produz, enfim referências comuns” (Carvalho, 2004).

É neste momento histórico que o samba torna-se o gênero brasileiro por excelência. O Professor Milton Moura diz que ele, o samba, é o “discurso modelar da nacionalidade brasileira”. Híbrido, mestiço, o samba formou-se e transformou-se “tanto a partir de indivíduos das classes médias cariocas como de sambistas do morro” (Moura, 2001).

O samba é fruto do diálogo entre grupos heterogêneos, é fruto da transformação da mestiçagem brasileira em orgulho nacional, orgulho “inventado” por Gilberto Freyre no livro Casa Grande e Senzala, obra que inverte o valor do mestiço na cultura brasileira. Em torno deste produto da mestiçagem, o samba, os brasileiros poderiam inventar a sua identidade contemporânea.

Este trabalho vem considerando a perspectiva teórica de Hermano Vianna que assevera em seu livro “O Mistério do Samba” que nunca existiu um samba pronto, “autêntico”, depois transformado em música nacional. “O samba vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização”.

A partir dos anos 30 o rádio, o disco e a publicidade “foram dimensões da indústria cultural fortemente articuladas ao aparecimento do samba urbano” (Carvalho, 2004).  O rádio foi a sua principal agência de veiculação.

“A invenção da brasilidade passa a definir como puro e autêntico aquilo que foi produto de uma longa negociação. O autêntico é sempre artificial, mas para ter “eficácia simbólica”, precisa ser encarado como natural, aquilo que “sempre foi assim” (Vianna, 1995).  E não foi difícil fazer dessa ‘novíssima tradição’, isto é, do samba carioca, a linguagem da experiência urbana brasileira se considerarmos que ele tinha “tudo” a seu dispor, em sua própria cidade já existiam todos os agentes culturais que articulados fomentaram o seu sucesso.

Vianna intriga-se com aquilo que chama de “mistério do samba”: afinal, como o samba passou de ritmo maldito à música nacional, às vezes até oficial? Longe de buscar desvendar este mistério, tentarei agora traçar uma rápida cronologia do percurso do samba na cidade do Rio de Janeiro:

. Século XIX: Na segunda metade deste século teremos a acentuação do “fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste do país, acompanhando a mudança de eixo econômico, que vinha já do século anterior e que se expressou também na mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro” (Sandroni, 2001). Neste período o samba era símbolo do atraso rural. Ritmos musicais deste momento, o lundu, o maxixe, a polca-lundu, o tango brasileiro, etc., estão nos inícios do samba como nós o conhecemos hoje. “É a partir da década de 1870 que a palavra “samba” começa a ser registrada na cidade do Rio de Janeiro” (idem, ibidem).

. Início do século XX: Na música popular ouvida no Brasil imperava um grande número de estilos e ritmos: eram polcas, valsas, tangos, mazurcas, schottishes, charleston, fox-trot, maxixes, modas, marchas, cateretês, desafios sertanejos, etc. “Nenhum destes estilos musicais, apesar de suas modas passageiras, parecia ter fôlego suficiente para conquistar a hegemonia no gosto popular da época. Nenhum deles era considerado o ritmo nacional por excelência” (Vianna, 1995). Nesta época, chegam ao Rio de Janeiro grupos de imigrados baianos cuja representante mais ilustre foi a famosa Tia Ciata. A casa de Tia Ciata na Praça Onze, endereço importantíssimo para o nascimento do samba, ocupa uma “dimensão quase mítica, ‘lugar de origem’ do samba carioca” (Sandroni, 2001). Foi numa das noitadas musicais na casa dessa tia baiana que foi composto o samba “Pelo Telefone”, que entrou para a história como o primeiro samba registrado.

. 1917: Lançamento de “Pelo Telefone”, de autoria coletiva mas registrado por Donga, é considerado por todos como o marco inicial do gênero. O início do samba tem o seu registro histórico em 1917 com o sucesso alcançado no carnaval do Rio de Janeiro por esta composição. Entre 1917 e o final dos anos 1920 o samba foi considerado um “falso” samba, por estar muito próximo do maxixe.

. 1920: Período de depuração da música que se praticava nas ruas e que conquistou as salas e os salões da República; movimentos de busca daquilo que era “essencialmente brasileiro”; mudança no gosto popular pela vitória do ângulo nacional com que a vanguarda do movimento modernista legitimou sua “crítica ao academicismo europeizante” (Carvalho, 2004). Entre os anos 20 e 30 o compositor de samba “pode ser pensado como um agente mediador entre mundos culturais distintos, como o dos salões intelectuais e o das festas populares das camadas mais pobres da cidade”. (Vianna, 1995). Carlos Sandroni percebe nesta década a separação do samba em dois tipos: um mais antigo substitui batuque e é associado à tradição, à ancestralidade baiana, à etnicidade negra, a Tia Ciata e aos compositores que freqüentaram a sua casa, como Donga, João da Baiana, Sinhô, Caninha, Pixinguinha; outro tipo mais recente substitui o maxixe e o tango, isento de heranças e etnicidades é associado à invenção, à modernidade, à composição sem grupo majoritário, ao bairro do Estácio de Sá, ao Rio de Janeiro e aos compositores que ali viviam ou circulavam: Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Brancura, e outros. Este último tipo é o samba de morro que logo se disseminou, influenciando artistas de outras áreas da cidade. O samba de morro aparece no final dos anos 20.

. Início dos anos 1930: O samba de morro é considerado o samba carioca por excelência. “Passa a ser considerado o ritmo mais puro, não contaminado por influências alienígenas, e que precisa ser preservado com o intuito de se preservar também a ‘alma’ brasileira. Para tanto é necessário o mito da sua ‘descoberta’, como se o samba do morro já estivesse ali, pronto, esperando que os outros brasileiros fossem escutá-lo para ter reveladas suas mais profundas raízes” (Vianna, 1995). Nesta década Noel Rosa adere ao samba do morro. “O samba que naquela década [1930] passou a ser consumido de norte a sul do país teve, como veremos, seus contornos definidos no Rio de Janeiro entre 1928 e 1932 aproximadamente; mas era apresentado como a mais tradicional expressão musical do Brasil inteiro” (Sandroni, 2001). No final da década de 30 “o samba será conhecido em todo o país, e mesmo no exterior, como um símbolo musical do Brasil”. (idem, ibdem)

. A partir de 1940: Consolidação das características fundamentais que definiram o samba até, pelo menos, os anos 1990.

. Contemporaneidade: “O samba carioca, mesmo não tendo a popularidade que conquistou nos anos 30, permanece atuando como agente unificador nacional”. (Vianna, 1995). Pelo menos um deles.

 

5. Invenção ou Herança?

Passo a abordar agora o debate levantado por Carlos Sandroni sobre a legitimidade da tese de Hermano Vianna que afirma o samba como invenção.

Sandroni concorda com a tese central do livro de Vianna: a aceitação do samba, nos anos 30, como música nacional, foi o “coroamento de uma tradição secular de contatos (...) entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras” (Sandroni, 2001).

Porém, Sandroni questiona a idéia de não haver uma autenticidade precedente no samba, discute a ausência de um lugar anterior no qual os agentes envolvidos teriam ido se referenciar, duvida do caráter eminentemente artificial e inventado na criação do samba.

Em síntese Carlos Sandroni apresenta uma visão dicotômica e defende que existem basicamente duas maneiras de se compreender o processo de transformação do samba em gênero nacional, colocando as coisas nestes termos:

. Uma perspectiva, a que ele defende, vê o samba ocupando um lugar anterior a sua nacionalização, lugar estreitamente relacionado à etnicidade negra e à ancestralidade baiana, afirma a existência do samba “autêntico” e “tradicional”.

. A outra maneira vê o samba como produto de um mistura homogênea, uma composição sem grupo majoritário, produto artificial, criação arbitrária, isenta de heranças e etnicidades, é a concepção apresentada por Hermano Vianna que denuncia a própria “invenção da tradição”.

Em seu livro Vianna retoma a tese de Eric Hobsbawn e Terence Ranger sobre a invenção das tradições, e afirma definitivamente que antes da criação do samba como música nacional não existia “um samba pronto, autêntico”, depois transformado neste símbolo basilar do Brasil contemporâneo.

Carlos Sandroni, indo por outra via, defende uma “concepção tópica”: o samba não teria sido inventado; ele já existia, “confinado às noites da senzala, dos terreiros de macumba ou dos morros do Rio de janeiro, antes de sair à luz do dia e conquistar o Brasil” (Sandroni, 2001). O “lugar” do samba seriam os redutos da cultura negra.

Nesta sua tese Sandroni se apóia em diversos autores como Oneyda Alvarenga, Arthur Ramos e Ary Vasconcelos (que se apóia em Luciano Gallet) para cogitar que o samba não teria sido inventado; antes, seria uma propriedade intrínseca da cultura afro-brasileira. Para ele, a versão para a qual tende o livro de Vianna, veria no samba uma música neutra, “despida de marcas culturais potencialmente conflitivas”.

Questiono a afirmação de Sandroni sobre a neutralidade ou ausência de conflitos na tese de Hermano Vianna, já que este afirma que a invenção do samba como música nacional foi fruto de articulações entre diferentes grupos, contatos pejados de entendimentos e de conflitos; portanto ele não nega o conflito, o atrito entre os diferentes (do ponto de vista de classe, de etnia, etc.), porém dá ênfase às “pontes” transculturais entre estes grupos.

Sandroni critica Vianna por este “esforçar-se por integrar o reverso da medalha ao curso da argumentação”, ou seja, por ele buscar compreender a invenção do samba como um produto dos contatos, articulações e negociações entre diferentes agências culturais, classes sociais e etnias, como um “denominador comum musical entre vários grupos” (Vianna, 1995) e por ele se empenhar em dizer que o samba não estava lá, pronto nos redutos negros cariocas.

 

6. Conclusão

O debate acima me leva a refletir sobre uma hipótese considerada pela maioria dos autores contemporâneos sem consistência: a hipótese da existência da “essência” dos sujeitos anterior ao tecimento das suas identidades.

Correndo todos os riscos por relativizar agora a idéia central considerada neste trabalho, concepção que ocupa um lugar de autoridade nos estudos contemporâneos, retorno à afirmativa que dá título a este artigo. O verbo ser está morto mesmo? Talvez não estejamos enterrando algo ainda com pulsações, com batimentos? Ele não teria cambiado apenas de lugar, de intensidade, de ênfase?

Não creio que este trabalho, sem consultar cientistas sociais e filósofos que tratam mais detidamente do desamparo e da indefinição do sujeito contemporâneo (como por exemplo Martin Heidegger que aborda o sentido do ser), possa dar uma resposta que contribua efetivamente com esta questão. Contudo, arrisco cogitar a possível co-existência de uma provável “essência” do ser com as narrativas inventadas do sujeito pós-moderno.

A perspectiva essencialista da identidade fundamenta a existência dos sujeitos (sejam eles indivíduos, nações, instituições, etc.) dotados de um centro essencial, de um núcleo fundamental antecedente a qualquer discurso que se narre sobre eles (me parece que esta é a hipótese de Sandroni a respeito do samba). Por outro lado, autores como Moura, Hall e Vianna afirmam as identidades dos sujeitos como coisas inventadas, resultado de vários processos de interação em que os seus contornos são continuamente definidos e redefinidos, como algo dinâmico, flexível, aberto continuamente a influências diversas e referenciado numa multiplicidade de pertenças.

Termino então este trabalho com algumas questões em suspenso. As identidades não se produzem por si mesmas, não são decorrências naturais e inevitáveis da essência dos sujeitos, identidade é ficção, mas a “modernidade líquida” (como diria Zygmunt Bauman) nega definitivamente uma essência do ser? Não pergunto se as narrativas identitárias são essências, ou se a essência produz diretamente identidades, o meu questionamento vai ao nível filosófico do ser. O transitório rejeita terminantemente o eterno? O ser-em-si é mesmo incabível?

 

Bibliografia

. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005.

. CARVALHO, Alice Rezende de. O samba, a opinião e outras bossas... na construção republicana do Brasil. In: Decantando a República. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.

. CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Rio de Janeiro, Editora: PERSEU ABRAMO, 2000.

. BHABHA, Homi K. O Local da Cultura.  Belo Horizonte. UFMG, 1998.

. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. DP&A, 2005.

. MOURA, Milton. Carnaval e Bahianidade – Arestas e curvas na coreografia das identidades do Carnaval de Salvador. Facom/UFBa. Salvador, 2001.

. SANDRONI, Carlos.  Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro, Jorge Zahar/ Editora UFRJ, 2001.

. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora/ Editora UFRJ, 1995.